Um a mais, e mais que isso: um culto solene, reservado à
celebração da Ceia do Senhor. Vezes – muitas! –, vezes sem conta a cena se
repete, que não é mera repetição – “...todas
as vezes..., em memória de mim”. A memória é atemporal e será sempre
atualização, presentificação do Ser, sem perda da verdade teológica. Fazer
culto é fazer teologia. Adorar é levar em conta a realeza daquele a quem se
adora. Faz bem participar de um evento que assim se preze.
O culto começa com a inspiração dos filhos de Corá, no
Salmo 84. Como transpira, luminosa, a
asseveração de que “...o Senhor dará
graça e glória (...) aos que andam em
retidão”, e como somos induzidos pela unção própria da Palavra a elevar a
alma, com Fanny Crosby, e dar glória a Deus!
Como se trata de um culto de Ceia do Senhor, e da Igreja
de Cristo, é natural que se fale da rude cruz, agora contemplada, em memória,
para que nos lembremos da graça e do amor indescritível de Deus. E aí, entra um
momento de raríssima graça e singeleza – o amado Pastor Feliciano Amaral canta,
para enlevo de todos, O Amor de Deus,
peça imortal de nossa hinódia, copyright de 1917, reformado em 1945 por F. M.
Lehman. É o amor de Deus, que lira alguma conseguirá traduzir, pois que vai
além do infinito céu e, à nossa vista, distende-se por sobre um mar sem fim,
que aponta para os “mares” profundos de nossa realidade.
Lembra-me a encantadora experiência, dos anos idos de
1959, decurso de 1960, quando minha família se transferia da pacata Sertânia
para a futurista Paulo Afonso, na Bahia. Logo, um servo do Senhor, colega de
trabalho de meu pai, e que o evangelizara, conduziu-nos à Primeira Igreja
Batista. Todos em pouco tempo nos havíamos tornado membros da Igreja pelo
batismo. Dezessete anos depois, um dos filhos do irmão Heleno José da Silva,
nosso pai na fé, e eu, fomos sabatinados por um concílio de pastores, com
vistas ao pastorado, sob a presidência do reitor do nosso seminário, Dr. David
Mein. A história, sob Deus, é, por vezes, escrita de forma ininteligível;
porém, no tempo certo, Deus mesmo a torna inteligível, clara, afirmativa,
dentro de seus insondáveis propósitos. Ainda na Bahia, Feliciano Amaral era-nos
uma inspiração. Era conhecido como o “Rouxinol das Alterosas”. Sua voz doce, a
leveza do seu cantar, produziam em nossa vida uma elevação espiritual
sinalética da própria grandeza da vocação cristã.
Recordar é viver, diz o brocardo. E a vida emerge solene,
grave, ungida, na exposição da mensagem extraída de um modelo testemunhal posto
como exemplo para a Igreja de hoje. É a consciência da hora e a chamada na hora
certa – o estarmos sempre em sintonia com o Altíssimo. A sabedoria e o espírito
refinado do pregador, que se baseou em Atos capítulo 8, fizeram-no substituir “eunuco”
por “etíope”. É de todo mais indicado. Fê-lo bem! Homilética é também ética e
estética. A culminância estava reservada justamente para a exposição bíblica, a
ser ainda comentada.
Por alguns momentos o culto parece imergir na cena
trevosa do Gólgota. E não poderia mesmo
não ser. Lá, na cruz – a nossa cruz –, o Filho de Deus foi cravado, e lá
permaneceu por horas infindáveis, em agonia trucidante. Evoca-se Isaias. É o
“homem de tristeza e dor” (não há como não se envolver com o Coro, que parece
cantar mais com o coração que com a impostação vocal).
Segue-se o momento solene da celebração da Ceia do
Senhor, em que pontificam o pão e o vinho – Consubstanciação?
Transubstanciação? Bem mais que o sentido e propósito destes termos: “Isto é o
meu corpo” – é a verdade dele mesmo, o Cristo. O que Ele diz é Ele mesmo! Suas
palavras “são espírito e vida”. Como
a dizer-nos: “Isto que eu vos digo é o meu corpo e o meu sangue”. A verdade da Ceia do Senhor é o que
transcende o pão e o vinho. Então, não temos tanto de ater-nos a interpretações
desses elementos, que são, por vezes, variadas e contraditórias. Mas e,
sobretudo, investir-nos mesmo no Cristo.
Fomos convidados pela congregação a “vir à mesa”. A mesa
é para os díspares que se tornaram irmãos pela mesma fé. Lá estavam, por
exemplo, na última ceia, figuras preconceituosas como Natanael, radicais como
Pedro, pouco delicadas no falar como Tiago e João, incrédulas como Tomé,
desonestas como Judas Iscariotes. Porque o conjunto se fez assim, é um
mistério... Mas, verdade seja, ali estavam prefigurações de todos os contextos
humanos e eclesiásticos. O que é propriamente eclesial é o que se viu no culto da Capunga: alegria no Senhor,
comunhão de fé.
Houve momentos destacáveis na celebração. Ressalte-se,
por primeiro, a exposição da Palavra, com um tratamento homilético primoroso. Um
pregador leve, de coração tomado pela mensagem. Livre de amarras, de comando...
Um pregador nas “asas” do Espírito. Com autoridade ele declara: A mensagem de
Filipe há de ser a mensagem da Igreja de
Jesus Cristo, “até à consumação do século” – séculos, para nós, no plural.
A pregação de Filipe focava a pessoa de
Jesus. Ele é o centro de toda a sua pregação. Ele é a figura central de toda
a Escritura. Ele é a concretização do Reino de Deus – o Reino presente –,
escatologia realizada. Presente eterno e não futuro que se espera. É a
esperança que se vê, que “não é
esperança; pois o que alguém vê, como o espera?” (Rm 8.24). Portanto, o testemunho de
Filipe só poderia mesmo culminar em Redenção.
A culminância e o sentido da mensagem se fazem na cruz, mas não se consumam na
cruz, não se encerram na cruz. O calvário era a passagem amorável para a Redenção,
e quem diz redenção diz do amor de Deus. O nosso mavioso cantor deu ao seu
primeiro LP, hoje em CD, o título À
Sombra da Cruz. A sombra, todavia,
foi dissipada pela luz. O Cristo vivo é a Luz.
É aí que este despretensioso cronista (e não é gáudio
propriamente seu) vê Epifania. O Rouxinol voltou ao microfone e com a
costumeira singeleza entoou O Rosto de Cristo, peça musical tocante,
de autoria de Josias Menezes. Tocante ainda foi a participação da congregação
ao murmurar o hino, sem, contudo, abafar a voz do cantor. Elevou-nos às alturas
para melhor “contemplar” um Senhor não mais alquebrado, não mais moído, não
mais um rosto deformado, uma fronte ensanguentada, mãos dilaceradas, pés
transpassados, peito aberto. Não, esse não é o nosso Cristo! Não é mais um “Senhor
morto”; é o Senhor vivo! A morte já não conta. O que agora conta é a
ressurreição, a vida. “...Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, a
tua vitória?”, é como a entende o Apóstolo Paulo (1Co 15.54, 55). É a palavra
de Is 25.8 se cumprindo.
O clímax do pensamento de Paulo se traduz numa palavra: Amor. Agora, “nada nos poderá do amor
de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”. O amor de Deus é a mais completa, senão a
única explicação para o fenômeno vicário. A visão humana questiona essa
justiça. Mas é a justiça de Deus, que não se questiona. Amor é virtude
inexplicável. Sente-se e se pratica.
E que mais dizer? O culto, caprichosamente montado,
encerrou-se com a congregação cantando Ressurreição,
de Robert Lowry. O Salvador saiu, vigoroso, da sepultura. Venceu a morte com
grande glória. Por sua graça conquistou a vida eterna – sua vida, que Ele
injeta em nós. Essa dimensão de eternidade não é nossa, é a sua vida que nos é
dada.
Exalta-se a congregação: Ele saiu da sepultura! Triunfou
em glória. Venceu o poder da morte e agora nos dá a todos a vida. Ressurgiu!
Aleluia! Ressurgiu!
Recife, 04
de Agosto de 2014
(Texto
revisto em 30.08.2015)
Pastor Válter Sales
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