sábado, 4 de abril de 2015

O QUE ESTAVA OCULTO




            Tudo se faz muito enigmático, até que a fé – “certeza de coisas que se esperam e convicção de fatos que se não veem” (Hb 11.1) –, ganhe corpo ou forma. No passado, umbrais manchados de sangue falavam apenas de “passagem” (Êx 12.13). Nem sempre é fixação. Logo poderá tornar-se miragem, não muito mais que prospecção, “sombra das coisas que haviam de vir” (Cl 2.17), com vistas à efetivação do Corpo. Tudo, entretanto, subordina-se a um processo “revelacional”, didático-pedagógico, que assim se faz pela incapacidade humana de compreender o todo, a completude, o consumado. De maneira alguma o homem compreenderia a infinitude de Deus. Seria como embutir a eternidade na temporalidade, o Absoluto no relativo, o todo no nada – tentativa niilista nietzschiana –, o Ser no não-ser. Isso se faria, completado o processo, sempre e invariavelmente como iniciativa de Deus.
         No processo da revelação temos Promessa (Gn 3.15), Profecia        (Is 9.1-7), Anúncio (Mt 1.21-23; Lc 2.8-20), Nascimento (Lc 2.1-7). Tudo agora é evidência. A revelação máxima se deu no Filho, depois de passar pela Natureza, pela Consciência humana e pela Palavra. O enigma se desfez. Deus está com os homens, pois que, também, se fez homem       (Jo 1.14). O Logos evoluiu na compreensão humana: é palavra, em sua gênese; é verbo, em sua ação, estado ou fenômeno; é pessoa, em Jesus Cristo. Setecentos anos antes, Isaias inseriu em sua última oração: “Porque desde a antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu Deus além de ti, trabalha para aquele que nele espera” (Is 64.4), a que Paulo faz eco, em 1Co 2.9. Cremos não se tratar, apenas, do cuidado com o cotidiano das pessoas. Essas solicitudes não delimitam uma profecia.
         O que estava oculto, agora pode ser suficientemente conhecido,    isto é, na medida do necessário para gerar uma fé operadora de vida. Como entendeu François Roustang in Growth in the Spirit [Crescimento no Espírito], “Somente quando Deus lhes dá vida é que podem encontra a Palavra da vida externamente e podem ouvir sua voz ressoar nos mais variados aspectos deste mundo”. Agora podemos nós ser tocados e tangidos pelo amor encarnado em Jesus Cristo e impregnado em nós pela força do seu poder. É a experiência sublime de incontáveis filhos de Deus, como em parte da oração de Sue Garmon –
Pelo fato de ser amada
e de amar,                                          
não preciso me preocupar  
com minha resposta ou falta de resposta.
Não tenho de lutar
com meu desejo de compreender.
Não tenho de lutar
com meu sentimento de indignidade.
Tudo o que tenho de fazer é
ficar sossegada,
permanecer bem perto de ti
e permitir que me ames
até recuperar minha integralidade.

         É evidente nossa necessidade de descoberta ao longo do precesso, via pela qual Deus se revela, de como conhecê-lo. Não se trata de salto único. Menos, ainda, de um salto no escuro... O que era oculto não mais o é. O Emanuel é realidade peremptória. O consumatum est foi decisivo, como se lhe definem a essência e a natureza; definitivo, impávido! Nada mais resta, da parte de Deus, fazer, a não ser abraçar todo aquele que nele crê. E é, efetivamente, o que ele faz – “Aquele que vem a mim, de maneira nenhuma o lançarei fora” (Jo 6.37). Já agora “Conhecemos a Deus ou, antes, somos conhecidos por Deus” (Gl 4.9a). Nós agora o temos porque “Manifestado, no fim dos tempos, por amor de vós” (1Pe 1.20).
         As profundezas de Deus são, agora, perscrutadas pelo Espírito e pelo Espírito nos são reveladas (1Co 2.10). É pelo Espírito que vem de Deus, que conhecemos o que por Deus nos foi dado gratuitamente (11).    O que hoje temos não nos advém de sabedoria humana. São “palavras ensinadas pelo Espírito, que confere coisas espirituais com espirituais” (13). Na sequência desse primoroso texto, Paulo desanuvia o caminho, o meio, a condição humana para compreender ou discernir o que é espiritual (14, 15). Há que tornar-se espiritual. Também isto é dom de Deus. Tudo nos é dado conhecer, exceto aquilo “que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade” (At 1.7b).
         O conhecimento de Deus, entretanto, tem implicações éticas. Há de retratar o modo como se conduzem os cristãos. Estes, desde os primórdios, davam-se a conhecer por sua identidade com o Nazareno. Lembram-nos esta implicação as observações de Plínio, o Velho, em seus relatórios ao Senado romano – há duas coisas que me impressionam nesses seguidores de Jesus de Nazaré: Primeira, “o elevado nível de sua vida moral”, o que não era comum naqueles dias. Segunda coisa: “o amor que os une” – como se amam esses seguidores do nazareno! Há de ser assim, até pelo exemplo dado por Jesus. Jeremias (31.3) reproduz o Pai Eterno: “Com amor eterno te amei; por isso, com benignidade te atraí”. O Filho reproduz o Pai (Jo.13.1) – “... tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. É assim, como modelo, que ele acentua, em Jo 15.12, 17, “O meu mandamento é este: que vos ameis uns outros, assim como eu vos amei” e “Isto vos mando: que vos ameis uns outros”. Mas, arrazoemos: ninguém ama por força de um mandamento. Ocorre que força, aí, não é um determinismo; é a força do exemplo, mais forte que uma ordem. A vocação para amar vem da própria experiência de seguir a Cristo. Assim pensando, cremos não impor sentido estranho a Jo 14.12, até porque, “Basta ao discípulo ser como o seu mestre” (Mt 10.25a). Diga-se, até por esse magno exemplo, que amar não é fazer concessões... Não é contemporizar. Amar é ser sério nas ações devidas.
Quem Jesus Cristo é, eis a medida do que havemos de ser. Ser nele é o nosso desafio maior. Cremos que a encarnação exerce, entre outros papéis, o de mostrar-nos o tipo ideal de homem, no modelo do Homem Jesus de Nazaré. O ensino de Paulo, em Ef 4.13, em que ele refere a “perfeita varonilidade” e a “medida da estatura da plenitude de Cristo”, em tudo corrobora as verdades acima mencionadas. Quer o apóstolo que Cristo seja formado nos seus seguidores – “Meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós” (Gl 4.19). Dores de parto pressupõem eclosão de vida.  
Nossa vida está, portanto, inexoravelmente atrelada à vida do Filho de Deus – “... porque eu vivo, vós também vivereis” (Jo 14.19b). E será assim para sempre, sem surpresas, sem perplexidades, a haurir de forma saudável a essência do Eterno, experimentar a sobre-excelência de conhecê-lo, a singeleza do caminhar com ele, a mansuetude de sua voz ou a agudeza de seus brados, quando a circunstância o requerer. Viver a esperança que se confunde com certeza (Rm 8.24). Alagar-se na sua doce paz (Jo 14.27). Contemplá-lo e ser por ele contemplado, amá-lo e ser por ele amado, imaginar-se com os discípulos na cena epifânica do Tabor    (Mc 9.2-8), e viver a glória de ser chamado, com ele, filho de Deus.

                                      Recife, 04 de Abril de 2015
 Válter Sales