A oração de Ana, mãe do Profeta Samuel (1Sm 1.9-17), é um
dos quadros bíblicos mais sugestivos e mais inspiradores. Há, nele, a razão
inexcusável de que Deus, o Senhor de todas as causas da nossa vida, sobrepõe-se
aos fatos de nossa realidade humana, sonhadora e frágil – o Deus da Bíblia não
é um deus deslembrado da vida de seus filhos. Ele não se situa como o deus dos
deístas, criador, é verdade, mas distanciado de suas criaturas, desinteressado
e esquecido. Vê-se uma mulher, em seu sonho natural da concepção, sentindo-se
impotente para realizá-lo. O que faz? Recorre a quem criou a vida. Literalmente
derrama-se diante do Senhor. Suas palavras em ardente súplica confundem-se com
a angústia de sua alma – “Levantou-se Ana, e, com amargura de alma, orou ao
Senhor, e chorou abundantemente” (10). E – grandeza maior de quem ora com
maturidade! –, o que desejava seria, em última análise, para o Senhor – “E fez
um voto, dizendo: Senhor dos Exércitos, se benignamente atentares para a
aflição da tua serva, e de mim te lembrares, e lhe deres um filho varão, ao
Senhor o darei por todos os dias da sua vida...” (11). Há, por fim, a
surpreendente percepção de um sacerdote – Eli. Faltou-lhe acuidade, algo
análogo à educação dos próprios filhos, o que resultou no desfecho doloroso
narrado em 1Sm 4.5-11, e sua própria morte (12-22). Aos noventa e oito anos, cego, teria visto a
deslustração da glória de Deus, com a tomada da arca pelos filisteus? É certo,
sim, que de ambos os fatos tomou conhecimento (17, 22).
Um quadro sugestivo? Sim. Por um exemplo de oração diferente
do que se convencionou entre nós. O nosso modelo de oração incorpora a forma, a
estética, a audibilidade. Oramos para que os outros vejam e ouçam. Quer-se,
nesses casos, a participação da comunidade. Nada a obstar, desde que não se
tenha essa forma de orar como sucedânea da oração secreta, no silêncio da alma.
Há, ainda, quem ora como se Deus padecesse de alguma deficiência auditiva...
A força da oração
de Ana emanava do mais profundo do seu ser – “Ana só no coração falava; seus
lábios se moviam, porém não se lhe ouvia voz nenhuma” (13). Ana apenas olhava
para o Senhor. O que vem a ser esse “olhar para o Senhor”? Assevera Richard
Foster que “olhar para o Senhor diz respeito a um fitar interno do coração
fixado em Deus, o Centro divino”. Acresce que, numa experiência dessa
magnitude, nós “desfrutamos o calor da presença de Deus. Ficamos embebidos no
amor e no cuidado divino. A alma, introduzida no Lugar Santo, fica imobilizada
com o que vê” (FOSTER, Richard J. Santuário
da Alma. São Paulo: Vida, 2011, p. 67. 142 pgs.)
Temos aí um exemplo de oração profunda, de um filho de Deus,
amadurecido, que ora não apenas para pedir alguma coisa, mas, sobretudo, para comungar com Deus. Nesse
nível de consciência, a oração evolui de usufruto para doação – “o que me deres
será teu”. É uma oração-dádiva, doação, daquele modelo que deve expressar o
comportamento orante de todo cristão.
A contemplar os lábios trêmulos de uma mulher sofrida,
postava-se um sacerdote um tanto quanto inconsequente. Teve-a por embriagada
(13, 14). Sacerdote é homem. Só Deus conhece nossas entranhas – o mais
recôndito do nosso ser. Nós, humanos, julgamos pela aparência. Deus vê nossa
interioridade. Alguns textos bíblicos reforçam essa forma de entender as
relações divino-humanas, como estes: Pv
21.2 – “...o Senhor sonda os corações”; Sl 7.9 – “...sondas a mente e o coração,
ó justo Deus”; Sl 26.2 – “...sonda-me o coração e os pensamentos”; Sl 139.23 –
é uma súplica do rei Davi: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me
e conhece os meus pensamentos”; Hb 4.13 – “...todas as coisas estão descobertas
e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas” e Ap 2.23 – “...eu
sou aquele que sonda mentes e corações...”.
O quadro é inspirador ao apresentar um nível de relação
divino- humana acima do convencional... É o que chamaríamos de oração no
Espírito (ou orar com o espírito?). Esse é um tipo de oração-relação que
corresponde ao modelo aspirado pelo Senhor, em João capítulo 4, verso 24. Paulo
reconhecia a relevância de se orar com a mente e com o espírito (1Co 14.15).
Quer-se o todo do ser investido na oração. A inspiração provém do fato de que
Deus está conosco na oração para além da mera verbalização. Longe da ostentação
farisaica, denunciada com veemência pelo Senhor, a verdadeira oração nos imerge
no âmago de Deus. Tais antropomorfismos nos fazem entender que, além de uma
relação direta, oração é, também, transcendência. É um contato direto com a
Realeza Divina. Toda oração-adoração principia pelo reconhecimento dessa
Realeza. Tal não ocorre senão pela graça de Deus. Ao pensar nessa abertura de
Deus ao ser humano, incomoda perceber a que distância estamos do padrão bíblico
de oração.
Com a mãe de Samuel, aprendemos que a oração convive com a
singeleza de coração, convive com o sofrimento, com a dor da alma. O simples
fato de podermos entrar em contato direto com Deus não nos afasta das marcas
ordinárias de nossa humanidade. Oração é, sobre todas as ideias que cercam o
tema, uma experiência de comunhão com o Altíssimo. Não é um anestésico para as
nossas mazelas nem um exercício psicológico para nos relaxar. A oração de Ana
transcendia, a partir do silêncio. Não há necessidade de altissonância para a
audição do espírito. Basta a sintonia. Essa experiência há de ser natural ao
homem-com-Deus. Isto é orar.
Com o sacerdote Eli, descobrimos que nem todo sacerdócio é intermediação... Como a
graça de Deus só pode ser compartilhada por um homem a outro homem, é
necessário que aquele que a compartilha seja, de antemão, por ela possuído. Não
há como ser um canal fora dessa competência. Eli é uma sugestão a todos que
aspiram à excelente obra do episcopado, a que permanentemente revisem posturas
e condição, a integridade de seu múnus sacerdotal.
Sobretudo, o texto que encima este artigo mostra-nos como
Deus, o amorável Deus, se compadece de seus filhos. A oração do silencio da
alma de Ana não ficou sem resposta. O filho que lhe saiu das entranhas, aquelas
mesmas entranhas que agonizaram em oração, tornou-se uma referência profética e
sacerdotal para o povo de Israel. De Norte a Sul da Terra Prometida – “Crescia
Samuel, e o Senhor era com ele, e nenhuma de todas as suas palavras deixou cair
em terra. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, conheceu que Samuel estava
confirmado como profeta do Senhor” (1Sm 3.19, 20). Afinal, Eli acertou.
Orientou o moço: “Fala, Senhor, porque o teu servo ouve”.
Recife,
23 de Fevereiro de 2016
Pastor
Válter Sales
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