quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

ORAÇÃO NO SILÊNCIO DA ALMA



         A oração de Ana, mãe do Profeta Samuel (1Sm 1.9-17), é um dos quadros bíblicos mais sugestivos e mais inspiradores. Há, nele, a razão inexcusável de que Deus, o Senhor de todas as causas da nossa vida, sobrepõe-se aos fatos de nossa realidade humana, sonhadora e frágil – o Deus da Bíblia não é um deus deslembrado da vida de seus filhos. Ele não se situa como o deus dos deístas, criador, é verdade, mas distanciado de suas criaturas, desinteressado e esquecido. Vê-se uma mulher, em seu sonho natural da concepção, sentindo-se impotente para realizá-lo. O que faz? Recorre a quem criou a vida. Literalmente derrama-se diante do Senhor. Suas palavras em ardente súplica confundem-se com a angústia de sua alma – “Levantou-se Ana, e, com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente” (10). E – grandeza maior de quem ora com maturidade! –, o que desejava seria, em última análise, para o Senhor – “E fez um voto, dizendo: Senhor dos Exércitos, se benignamente atentares para a aflição da tua serva, e de mim te lembrares, e lhe deres um filho varão, ao Senhor o darei por todos os dias da sua vida...” (11). Há, por fim, a surpreendente percepção de um sacerdote – Eli. Faltou-lhe acuidade, algo análogo à educação dos próprios filhos, o que resultou no desfecho doloroso narrado em 1Sm 4.5-11, e sua própria morte (12-22).  Aos noventa e oito anos, cego, teria visto a deslustração da glória de Deus, com a tomada da arca pelos filisteus? É certo, sim, que de ambos os fatos tomou conhecimento (17, 22).
         
               Um quadro sugestivo? Sim. Por um exemplo de oração diferente do que se convencionou entre nós. O nosso modelo de oração incorpora a forma, a estética, a audibilidade. Oramos para que os outros vejam e ouçam. Quer-se, nesses casos, a participação da comunidade. Nada a obstar, desde que não se tenha essa forma de orar como sucedânea da oração secreta, no silêncio da alma. Há, ainda, quem ora como se Deus padecesse de alguma deficiência auditiva... 

         A força da oração de Ana emanava do mais profundo do seu ser – “Ana só no coração falava; seus lábios se moviam, porém não se lhe ouvia voz nenhuma” (13). Ana apenas olhava para o Senhor. O que vem a ser esse “olhar para o Senhor”? Assevera Richard Foster que “olhar para o Senhor diz respeito a um fitar interno do coração fixado em Deus, o Centro divino”. Acresce que, numa experiência dessa magnitude, nós “desfrutamos o calor da presença de Deus. Ficamos embebidos no amor e no cuidado divino. A alma, introduzida no Lugar Santo, fica imobilizada com o que vê” (FOSTER, Richard J. Santuário da Alma. São Paulo: Vida, 2011, p. 67. 142 pgs.)  

         Temos aí um exemplo de oração profunda, de um filho de Deus, amadurecido, que ora não apenas para pedir alguma coisa, mas,  sobretudo, para comungar com Deus. Nesse nível de consciência, a oração evolui de usufruto para doação – “o que me deres será teu”. É uma oração-dádiva, doação, daquele modelo que deve expressar o comportamento orante de todo cristão.

         A contemplar os lábios trêmulos de uma mulher sofrida, postava-se um sacerdote um tanto quanto inconsequente. Teve-a por embriagada (13, 14). Sacerdote é homem. Só Deus conhece nossas entranhas – o mais recôndito do nosso ser. Nós, humanos, julgamos pela aparência. Deus vê nossa interioridade. Alguns textos bíblicos reforçam essa forma de entender as relações divino-humanas, como estes:  Pv 21.2 – “...o Senhor sonda os corações”; Sl 7.9 – “...sondas a mente e o coração, ó justo Deus”; Sl 26.2 – “...sonda-me o coração e os pensamentos”; Sl 139.23 – é uma súplica do rei Davi: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos”; Hb 4.13 – “...todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas” e Ap 2.23 – “...eu sou aquele que sonda mentes e corações...”.    

         O quadro é inspirador ao apresentar um nível de relação divino- humana acima do convencional... É o que chamaríamos de oração no Espírito (ou orar com o espírito?). Esse é um tipo de oração-relação que corresponde ao modelo aspirado pelo Senhor, em João capítulo 4, verso 24. Paulo reconhecia a relevância de se orar com a mente e com o espírito (1Co 14.15). Quer-se o todo do ser investido na oração. A inspiração provém do fato de que Deus está conosco na oração para além da mera verbalização. Longe da ostentação farisaica, denunciada com veemência pelo Senhor, a verdadeira oração nos imerge no âmago de Deus. Tais antropomorfismos nos fazem entender que, além de uma relação direta, oração é, também, transcendência. É um contato direto com a Realeza Divina. Toda oração-adoração principia pelo reconhecimento dessa Realeza. Tal não ocorre senão pela graça de Deus. Ao pensar nessa abertura de Deus ao ser humano, incomoda perceber a que distância estamos do padrão bíblico de oração.

         Com a mãe de Samuel, aprendemos que a oração convive com a singeleza de coração, convive com o sofrimento, com a dor da alma. O simples fato de podermos entrar em contato direto com Deus não nos afasta das marcas ordinárias de nossa humanidade. Oração é, sobre todas as ideias que cercam o tema, uma experiência de comunhão com o Altíssimo. Não é um anestésico para as nossas mazelas nem um exercício psicológico para nos relaxar. A oração de Ana transcendia, a partir do silêncio. Não há necessidade de altissonância para a audição do espírito. Basta a sintonia. Essa experiência há de ser natural ao homem-com-Deus. Isto é orar.

         Com o sacerdote Eli, descobrimos que nem todo sacerdócio é intermediação... Como a graça de Deus só pode ser compartilhada por um homem a outro homem, é necessário que aquele que a compartilha seja, de antemão, por ela possuído. Não há como ser um canal fora dessa competência. Eli é uma sugestão a todos que aspiram à excelente obra do episcopado, a que permanentemente revisem posturas e condição, a integridade de seu múnus sacerdotal.

         Sobretudo, o texto que encima este artigo mostra-nos como Deus, o amorável Deus, se compadece de seus filhos. A oração do silencio da alma de Ana não ficou sem resposta. O filho que lhe saiu das entranhas, aquelas mesmas entranhas que agonizaram em oração, tornou-se uma referência profética e sacerdotal para o povo de Israel. De Norte a Sul da Terra Prometida – “Crescia Samuel, e o Senhor era com ele, e nenhuma de todas as suas palavras deixou cair em terra. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, conheceu que Samuel estava confirmado como profeta do Senhor” (1Sm 3.19, 20). Afinal, Eli acertou. Orientou o moço: “Fala, Senhor, porque o teu servo ouve”.

                                               Recife, 23 de Fevereiro de 2016


                                                          Pastor Válter Sales

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