sábado, 16 de maio de 2015

CRER: POR ONDE COMEÇAR?




            Crer, definitivamente não é fácil. Crer exige a renúncia de velhos e arraigados conceitos, muitos dos quais não apenas nos prendem, como, ainda, nos desencaminham... Crer exige abrir de si mesmo, do ensimesmamento, a fim de reconhecer alguém que é maior que nós mesmos, diante de quem havemos de inclinar a mente e abrir o coração. É verdade que o coração entra nesse processo. O mui acreditado Apóstolo Paulo escreveu: “Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação” (Rm 10.10). Aí aparece um novo elemento: a boca. Antes (verso 9) ele escreveu: “Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. Crer, a esta ótica, requer as disposições interiores, do coração, e a expressão daquele que crê – confessar.   É a coragem de dizer, aos quatro cantos, eu creio! O fechamento da questão vem das palavras de Jesus: “... todo aquele que nele crê tem a vida eterna” (Jo 3.16).
            Crer é uma via de mão dupla. Uma via que traz Deus ao ser humano, outra que leva o ser humano a Deus. Crer, portanto, é um encontro divino-humano. Deus já fez sua parte. Desde os relatos da criação, após os quais deu-se a tragédia humana da pecaminosa queda, Deus tomou a iniciativa de comunicar a redenção humana do seu pecado. Temos, aí, a promessa (Gn 3.15). Daí por diante, todos os atos divinos tendem à concretização, paulatina, mas segura; segura e objetiva, de nossa redenção. Isaias, como profeta messiânico, fala-nos do nascimento do Filho-Redentor – “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (9.6). Mateus, o evangelista, fala-nos do anúncio do nascimento de Jesus Cristo, que foi feito pelos anjos (1.18-25). Lucas, outro evangelista, fala-nos do próprio nascimento (2.1-7). Veja-se a sequência: Promessa, Profecia, Anúncio, Nascimento. Deus se comunica aos seres humanos por intermédio do Filho, o Emanuel, que significa Deus conosco. Toda a trajetória bíblica é centralizada na Pessoa Excelsa de Jesus Cristo. São emblemáticas suas palavras derradeiras na cruz: “Está consumado!” (Jo 19.30). É significativo que os evangelistas sinóticos não tenham anotado esta frase, dentre as palavras proferidas pelo Senhor crucificado. Coube a João, o teólogo dos Evangelhos, anotá-la. O processo de redenção, “conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo” (1Pe 1.20) e, portanto, não uma medida de última hora, pois que poria por terra a onisciência de Deus, enfim se consuma na morte expiatória, vicária, plena de sentido.
            Mas há o outro lado dessa via: a diretriz a ser assumida pelo homem. De começo, fazemos coro com o autor da carta aos Hebreus, num texto clássico em que desfilam heróis da fé que viveram nos tempos do Antigo Testamento, aqueles mesmos em que Deus fez a promessa (Gn 3.15). O autor, Paulo ou Apolo, não sabemos, faz de Hebreus 11 uma nobre galeria de heróis da fé. Antes, porém, de referi-los, constata: “De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (6). Crer é o começo dessa caminhada. Experimentar quem é Deus, vem depois. É uma questão de fé. A fé vem antes, como Deus veio antes, é o ensino de Paulo, em Ef 2.1 – “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados...”. O arrazoado é repetido nos versos 4 a 10 – “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo – pela graça sois salvos, e juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; para mostrar, nos séculoss vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não vem de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”. O ensino doutrinário de Paulo não se confina nos versos 8 e 9 – objeto da pregação mais frequente –, mas no verso 10. A vida é o espelho da fé verdadeira. Vem da              lógica de Tiago que “a fé sem as obras é morta” (Tg 2.14-18). Conquanto não vivamos por vista e sim pela fé, não se há de encolher a mente diante da ampla doutrina paulina da conformidade... O desespero de Lutero, frente a esta “epístola de palha”, dilui-se na convicção de Tiago e de Paulo de que a fé necessita de caracterização.
A história da graça é, portanto, a história de um Deus que se antecipa. A esta luz, é razoável dizer que “não há caminho do homem para Deus, há somente caminho de Deus para o homem”. O caminho é Jesus Cristo. Deus se nos dá a conhecer através dele: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Neste caso, a deidade é afirmada para contrapor a incredulidade dos judeus. Mas, no círculo mais íntimo, o dos discípulos, a dúvida também se fez presente. Tomé, Filipe, Natanael, nós outros, hoje, na idiologia ou na prática. Valha-nos o memorável diálogo de Jesus com Filipe (Jo 14.7-11).

Se vós me tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu Pai. Desde agora o conheceis e o tendes visto.
– Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.
– Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?
– Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesm; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras.
– Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras.
Com boa dose de razão fala-se de duas dimensões ou conotações da fé: uma cognitiva, ou assentimento intelectual – o conhecimento; a outra é experiencial, que nos projeta na obediência, na vida. Quem crê há de viver o que crê. A fé, que é compreendida, e neste sentido não é irracional, é, igualmente, assinalada por marcas de serviço na vida de um seguidor de Jesus Cristo. Somente assim ela é coerente.


Por onde ficou o tema que nos dirige?

Não ficou, ao contrário, acompanha-nos, na sequência e na projeção de uma vida de fé obediente, de serviço adorador e estimulante, nas boas obras para as quais fomos criados em Cristo – o modo de expressar nosso amor ao próximo. Tudo isso pertence à demanda da nova vida em Cristo e é o que lhe dá sentido e alento. Mas, como em nós, humanos, nada é pleno, senão medeiado entre nossos limites tão estreitos, necessitamos de começo, meio e fim. Então persiste a pergunta inicial: por onde começar? Havemos de começar por crer em Deus. Começar pela inarredável necessidade de crer em Deus. Inexorável mesmo, para que não expire o tempo de crer. “Sem fé é impossível agradar a Deus”, diz-nos o texto de Hebreus, já citado acima.

Lembra-nos memorável entrevista concedida pela escritora cearense, primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras, Rachel de Queiroz, já na encosta crepuscular da vida terrena: “Eu não aprendi a ter fé. Eu não consigo ter fé. É muito ruim não ter fé. A gente fica só, em completo abandono em meio às provações e dificuldades da vida. É muito ruim não ter fé”. Ao que parece, a famosa escritora se foi nesse profundo desalento de não ter fé.

Fé também vem a ser um exercício de boa vontade. É preciso querer ter fé. Não é algo que se imponha. Aliás, por princípio, nenhuma experiência imposta é válida para a vida. O que se impõe está muito mais próximo da mera encenação que da verdade. Crê-se com o coração, e o coração jamais se move por uma lei  ou imposição. Nosso coração é agente de decisão. É ele quem enxerga, aponta e define as demandas da nossa vida.



                                  
                                               Recife, 16.05.2015


                                      Pr.Válter Sales

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