Crer, definitivamente não é fácil. Crer exige a renúncia
de velhos e arraigados conceitos, muitos dos quais não apenas nos prendem,
como, ainda, nos desencaminham... Crer exige abrir de si mesmo, do
ensimesmamento, a fim de reconhecer alguém que é maior que nós mesmos, diante
de quem havemos de inclinar a mente e abrir o coração. É verdade que o coração
entra nesse processo. O mui acreditado Apóstolo Paulo escreveu: “Porque com o
coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação” (Rm
10.10). Aí aparece um novo elemento: a boca. Antes (verso 9) ele escreveu: “Se,
com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que
Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. Crer, a esta ótica, requer
as disposições interiores, do coração, e a expressão daquele que crê –
confessar. É a coragem de dizer, aos
quatro cantos, eu creio! O fechamento da questão vem das palavras de Jesus:
“... todo aquele que nele crê tem a vida eterna” (Jo 3.16).
Crer é uma via de mão dupla. Uma via que traz Deus ao ser
humano, outra que leva o ser humano a Deus. Crer, portanto, é um encontro
divino-humano. Deus já fez sua parte. Desde os relatos da criação, após os
quais deu-se a tragédia humana da pecaminosa queda, Deus tomou a iniciativa de
comunicar a redenção humana do seu pecado. Temos, aí, a promessa (Gn 3.15). Daí
por diante, todos os atos divinos tendem à concretização, paulatina, mas
segura; segura e objetiva, de nossa redenção. Isaias, como profeta messiânico,
fala-nos do nascimento do Filho-Redentor – “Porque um menino nos nasceu, um
filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (9.6).
Mateus, o evangelista, fala-nos do anúncio do nascimento de Jesus Cristo, que
foi feito pelos anjos (1.18-25). Lucas, outro evangelista, fala-nos do próprio
nascimento (2.1-7). Veja-se a sequência: Promessa, Profecia, Anúncio,
Nascimento. Deus se comunica aos seres humanos por intermédio do Filho, o Emanuel,
que significa Deus conosco. Toda a trajetória bíblica é centralizada na Pessoa
Excelsa de Jesus Cristo. São emblemáticas suas palavras derradeiras na cruz: “Está
consumado!” (Jo 19.30). É significativo que os evangelistas sinóticos não
tenham anotado esta frase, dentre as palavras proferidas pelo Senhor
crucificado. Coube a João, o teólogo dos Evangelhos, anotá-la. O processo de
redenção, “conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo” (1Pe 1.20) e,
portanto, não uma medida de última hora, pois que poria por terra a onisciência
de Deus, enfim se consuma na morte expiatória, vicária, plena de sentido.
Mas há o outro lado dessa via: a diretriz a ser assumida
pelo homem. De começo, fazemos coro com o autor da carta aos Hebreus, num texto
clássico em que desfilam heróis da fé que viveram nos tempos do Antigo
Testamento, aqueles mesmos em que Deus fez a promessa (Gn 3.15). O autor, Paulo
ou Apolo, não sabemos, faz de Hebreus 11 uma nobre galeria de heróis da fé.
Antes, porém, de referi-los, constata: “De fato, sem fé é impossível agradar a
Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele
existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (6). Crer é o começo dessa
caminhada. Experimentar quem é Deus, vem depois. É uma questão de fé. A fé vem
antes, como Deus veio antes, é o ensino de Paulo, em Ef 2.1 – “Ele vos deu vida,
estando vós mortos nos vossos delitos e pecados...”. O arrazoado é repetido nos
versos 4 a 10 – “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor
com que nos amou, e estando nós mortos em nossos em nossos delitos, nos deu
vida juntamente com Cristo – pela graça sois salvos, e juntamente com ele, nos
ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; para
mostrar, nos séculoss vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade
para conosco, em Cristo Jesus. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e
isto não vem de vós; é dom de Deus; não vem de obras, para que ninguém se
glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as
quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”. O ensino doutrinário
de Paulo não se confina nos versos 8 e 9 – objeto da pregação mais frequente –,
mas no verso 10. A vida é o espelho da fé verdadeira. Vem da lógica de Tiago que “a fé sem as
obras é morta” (Tg 2.14-18). Conquanto não vivamos por vista e sim pela fé, não
se há de encolher a mente diante da ampla doutrina paulina da conformidade... O
desespero de Lutero, frente a esta “epístola de palha”, dilui-se na convicção
de Tiago e de Paulo de que a fé necessita de caracterização.
A
história da graça é, portanto, a história de um Deus que se antecipa. A esta
luz, é razoável dizer que “não há caminho do homem para Deus, há somente
caminho de Deus para o homem”. O caminho é Jesus Cristo. Deus se nos dá a
conhecer através dele: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Neste caso, a deidade
é afirmada para contrapor a incredulidade dos judeus. Mas, no círculo mais
íntimo, o dos discípulos, a dúvida também se fez presente. Tomé, Filipe,
Natanael, nós outros, hoje, na idiologia ou na prática. Valha-nos o memorável
diálogo de Jesus com Filipe (Jo 14.7-11).
– Se
vós me tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu Pai. Desde agora o
conheceis e o tendes visto.
–
Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.
–
Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens
conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?
–
Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos
digo não as digo por mim mesm; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas
obras.
–
Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas
obras.
Com boa dose de razão fala-se de duas
dimensões ou conotações da fé: uma cognitiva, ou assentimento intelectual – o
conhecimento; a outra é experiencial, que nos projeta na obediência, na vida.
Quem crê há de viver o que crê. A fé, que é compreendida, e neste sentido não é
irracional, é, igualmente, assinalada por marcas de serviço na vida de um
seguidor de Jesus Cristo. Somente assim ela é coerente.
Por onde ficou o tema que nos dirige?
Não ficou, ao contrário, acompanha-nos, na
sequência e na projeção de uma vida de fé obediente, de serviço adorador e
estimulante, nas boas obras para as quais fomos criados em Cristo – o modo de
expressar nosso amor ao próximo. Tudo isso pertence à demanda da nova vida em
Cristo e é o que lhe dá sentido e alento. Mas, como em nós, humanos, nada é
pleno, senão medeiado entre nossos limites tão estreitos, necessitamos de
começo, meio e fim. Então persiste a pergunta inicial: por onde começar?
Havemos de começar por crer em Deus. Começar pela inarredável necessidade de
crer em Deus. Inexorável mesmo, para que não expire o tempo de crer. “Sem fé é
impossível agradar a Deus”, diz-nos o texto de Hebreus, já citado acima.
Lembra-nos memorável entrevista concedida
pela escritora cearense, primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de
Letras, Rachel de Queiroz, já na encosta crepuscular da vida terrena: “Eu não
aprendi a ter fé. Eu não consigo ter fé. É muito ruim não ter fé. A gente fica
só, em completo abandono em meio às provações e dificuldades da vida. É muito
ruim não ter fé”. Ao que parece, a famosa escritora se foi nesse profundo desalento
de não ter fé.
Fé também vem a ser um exercício de boa
vontade. É preciso querer ter fé. Não é algo que se imponha. Aliás, por
princípio, nenhuma experiência imposta é válida para a vida. O que se impõe
está muito mais próximo da mera encenação que da verdade. Crê-se com o coração,
e o coração jamais se move por uma lei
ou imposição. Nosso coração é agente de decisão. É ele quem enxerga,
aponta e define as demandas da nossa vida.
Recife,
16.05.2015
Pr.Válter
Sales
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