sábado, 19 de dezembro de 2015

Marchem!




                                                                       Por que clamas a mim? Ordena aos filhos
                                                                       de Israel que marchem. (Êx 14.15).

           
Uma súplica num momento grave, seguida de uma resposta precisa – o afã  divino para a nossa vida –, numa circunstância difícil, dessas para as quais só Deus tem a solução. A exortação é seguida de uma promessa do Divino: “O Senhor guerreará por vós. Por isso, acalmai-vos” (14). Interessante a versão bíblica King James, de 1611, tradução atualizada em 2002, que grafa: “Por que clamas por mim? Dize aos filhos de Israel que marchem avante!”. Lembra-me minha mãe, D. Maria Siqueira, uma senhora simples e de porte grave, do alto de seus 92 anos, que costumava dizer: “Meu filho, pra frente é que se anda!”.  Na BKJ, o verso 14 traz um significativo acréscimo: “... acalmai-vos e ficai calados!”. Em nossa relação com o Absoluto, parece claro que o silêncio é melhor indicador de boa postura que uma falação desenfreada, por vezes inconsequente. Da sabedoria de Salomão inferimos que “há tempo de ficar calado e tempo de falar” (Ec 3.7). Enquanto Deus peleja por nós, é tempo de ficar calado. Tempo de ouvir. A voz do Senhor é poderosa, cheia de majestade, diz o belo Salmo 29, verso 4, da lavra do mavioso cantor Davi. Ouvi-la sempre é o que devemos fazer, sob sua égide e em plena sintonia com Ele, para que a comunicação se faça de todo e em tudo.

A passagem pelo Mar Vermelho é a travessia da condição de uma escravidão quadricentenária para uma nova condição, não só de liberdade, mas de uma existência nova, com implicações e exigências bem peculiares a um filho de Deus, que deve saber onde deverá pôr o pé. Não é natural pensar-se numa relação especial com Deus sem uma travessia radical na vida. Israel migrou de uma civilização bem sólida e antiga para uma experiência no deserto. Deserto de tudo, menos da liderança de Moisés e da presença de Deus. Tudo é novo! Há um ineditismo por vezes chocante e desafiador. Não há habitação, nem pão, nem água e, para alguns, nem mesmo sepulturas que acomodassem sua perspectiva de morte iminente.

Para Deus, entretanto, e que se tornou real na peregrinação israelita, o inédito não é desprovido do novo; nem na perspectiva do Eterno há novo e velho: tudo se faz um presente eterno. O tudo é o sempre. O pão vem do céu. A água brota de uma rocha.  O deserto é pleno de tudo. Dele brota e nele se nutre a esperança. O deserto traduz a presença de Deus. O deserto é a voz providencial do Todo-Poderoso.

Prefigurações indesconfiáveis! O pão, mais que o maná que perecia ao final do dia, é eterno – “Eu sou o pão da vida; quem vem a mim jamais terá fome...”      (Jo 6.35). Há notável alcance nas palavras do Cristo. Ao tempo em que fala de pão, fala igualmente de água – “... e quem crê em mim jamais terá sede”. Há um todo embutido na pessoa de Jesus e em suas palavras – pão e água se complementam, pois que são a mesma vida. Bem asseverou o Apóstolo Paulo, em Cl 3.11, ressalvando-se os desvios interpretativos, que “Cristo é tudo em todos”. Em Cristo todas as barreiras são vencidas. As águas de Meribá, em Refidim, conquanto jorrassem de forma abundante e sempre, seriam nada mais que matéria líquida; mas seriam, também, eloquente figura daquele que disse: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é o que te diz: Dá-me um pouco de água, tu lhe pedirias e ele te daria água viva (...) Quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede (...) ela se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.10, 14).

E a rocha? Esta é Cristo mesmo, simbolicamente Cristo, mais que aquele bloco sólido do deserto, sujeito a mutações naturais e ao peso irrefragável do tempo a impor-lhe alterações e, até, a extinção. Feri-la, como o fez o indignado Moisés, equivale a ferir a face do Cristo de Deus, como (e quão grave é isso!), no deserto, as tábuas da Lei, arremessadas sobre o bezerro de ouro, podem indicar que a Lei fora, antes, quebrada no coração do povo. O Cordeiro de Deus seria demolido na ignominiosa cruz, aos olhos de seus algozes. Mas só a essa percepção. Não como projeto eterno do Senhor e aos olhos da genuína fé. Cristo, a Rocha, é eterno.

As tempestades do deserto são avassaladoras, no deserto; não em nossa vida, que, por vezes, assume perfis desérticos. No deserto, Deus estava com o povo. Na vida, Deus está conosco. O deserto não é desesperador quando sabemos que Deus está conosco. Nem ainda as turbulências da saída do Egito, as idas e vindas faraônicas, a confrontação tenebrosa com o mar e as incertezas do porvir. Deus fende o mar e abre caminho por um deserto desconhecido. Marchar é a ordem – “Por que clamas a mim? Ordena aos israelitas que marchem”. Vão em frente!     Eu estou no comando. Isso basta! Não há de haver temor num espaço de todo ocupado pela fé.

O deserto é confiável. A caminhada é segura. O destino está traçado. Que o povo vá, que a vida vá, que a fé se imponha, como “garantia do que se espera e prova do que não se vê” (Hb 11.1), mas garantia e prova!

Portanto, “aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Sl 46.10). Ou no marcante testemunho do patriarca Jó, ao pedir perdão a Deus por sua tibiezas (Jó 42.2 BKJ) – “Sei que podes realizar tudo quanto desejares; absolutamente nenhuma das tuas ideias e vontades serão frustradas!”.

“Aquietai-vos...” – marchar pelo deserto é ocupar-se da vida.


                                   Recife, 19 de Dezembro de 2015
Pastor Válter Sales

Texto dedicado ao meu genro, Ito. Natal de 2015.

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