Por que clamas a
mim? Ordena aos filhos
de Israel que marchem. (Êx 14.15).
Uma súplica num momento grave, seguida de uma
resposta precisa – o afã divino para a
nossa vida –, numa circunstância difícil, dessas para as quais só Deus tem a
solução. A exortação é seguida de uma promessa do Divino: “O Senhor guerreará
por vós. Por isso, acalmai-vos” (14). Interessante a versão bíblica King James,
de 1611, tradução atualizada em 2002, que grafa: “Por que clamas por mim? Dize
aos filhos de Israel que marchem avante!”. Lembra-me minha mãe, D. Maria
Siqueira, uma senhora simples e de porte grave, do alto de seus 92 anos, que
costumava dizer: “Meu filho, pra frente é que se anda!”. Na BKJ, o verso 14 traz um significativo
acréscimo: “... acalmai-vos e ficai calados!”. Em nossa relação com o Absoluto,
parece claro que o silêncio é melhor indicador de boa postura que uma falação
desenfreada, por vezes inconsequente. Da sabedoria de Salomão inferimos que “há
tempo de ficar calado e tempo de falar” (Ec 3.7). Enquanto Deus peleja por nós,
é tempo de ficar calado. Tempo de ouvir. A voz do Senhor é poderosa, cheia de
majestade, diz o belo Salmo 29, verso 4, da lavra do mavioso cantor Davi. Ouvi-la
sempre é o que devemos fazer, sob sua égide e em plena sintonia com Ele, para
que a comunicação se faça de todo e em tudo.
A passagem pelo Mar Vermelho é a travessia da condição de uma escravidão
quadricentenária para uma nova condição, não só de liberdade, mas de uma
existência nova, com implicações e exigências bem peculiares a um filho de Deus,
que deve saber onde deverá pôr o pé. Não é natural pensar-se numa relação
especial com Deus sem uma travessia
radical na vida. Israel migrou de uma civilização bem sólida e antiga para uma
experiência no deserto. Deserto de tudo, menos da liderança de Moisés e da
presença de Deus. Tudo é novo! Há um ineditismo por vezes chocante e
desafiador. Não há habitação, nem pão, nem água e, para alguns, nem mesmo sepulturas
que acomodassem sua perspectiva de morte iminente.
Para Deus, entretanto, e que se tornou real
na peregrinação israelita, o inédito não é desprovido do novo; nem na
perspectiva do Eterno há novo e velho: tudo se faz um presente eterno. O
tudo é o sempre. O pão vem do céu. A água brota de uma rocha. O deserto é pleno de tudo. Dele brota e nele
se nutre a esperança. O deserto traduz a presença de Deus. O deserto é a voz
providencial do Todo-Poderoso.
Prefigurações indesconfiáveis! O pão, mais
que o maná que perecia ao final do dia, é eterno – “Eu sou o pão da vida; quem
vem a mim jamais terá fome...” (Jo
6.35). Há notável alcance nas palavras do Cristo. Ao tempo em que fala de pão,
fala igualmente de água – “... e quem crê em mim jamais terá sede”. Há um todo
embutido na pessoa de Jesus e em suas palavras – pão e água se complementam,
pois que são a mesma vida. Bem asseverou o Apóstolo Paulo, em Cl 3.11, ressalvando-se
os desvios interpretativos, que “Cristo é tudo em todos”. Em Cristo todas as
barreiras são vencidas. As águas de Meribá, em Refidim, conquanto jorrassem de
forma abundante e sempre, seriam nada mais que matéria líquida; mas seriam,
também, eloquente figura daquele que disse: “Se conhecesses o dom de Deus e
quem é o que te diz: Dá-me um pouco de água, tu lhe pedirias e ele te daria
água viva (...) Quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede (...)
ela se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.10, 14).
E a rocha? Esta é Cristo mesmo,
simbolicamente Cristo, mais que aquele bloco sólido do deserto, sujeito a
mutações naturais e ao peso irrefragável do tempo a impor-lhe alterações e,
até, a extinção. Feri-la, como o fez o indignado Moisés, equivale a ferir a
face do Cristo de Deus, como (e quão grave é isso!), no deserto, as tábuas da
Lei, arremessadas sobre o bezerro de ouro, podem indicar que a Lei fora, antes,
quebrada no coração do povo. O Cordeiro de Deus seria demolido na ignominiosa
cruz, aos olhos de seus algozes. Mas só a essa percepção. Não como projeto
eterno do Senhor e aos olhos da genuína fé. Cristo, a Rocha, é eterno.
As tempestades do deserto são avassaladoras,
no deserto; não em nossa vida, que, por vezes, assume perfis desérticos. No
deserto, Deus estava com o povo. Na vida, Deus está conosco. O deserto não é
desesperador quando sabemos que Deus está conosco. Nem ainda as turbulências da
saída do Egito, as idas e vindas faraônicas, a confrontação tenebrosa com o mar
e as incertezas do porvir. Deus fende o mar e abre caminho por um deserto
desconhecido. Marchar é a ordem – “Por que clamas a mim? Ordena aos israelitas
que marchem”. Vão em frente! Eu estou
no comando. Isso basta! Não há de haver temor num espaço de todo ocupado pela
fé.
O deserto é confiável. A caminhada é segura.
O destino está traçado. Que o povo vá, que a vida vá, que a fé se imponha, como
“garantia do que se espera e prova do que não se vê” (Hb 11.1), mas garantia e
prova!
Portanto, “aquietai-vos e sabei que eu sou
Deus” (Sl 46.10). Ou no marcante testemunho do patriarca Jó, ao pedir perdão a
Deus por sua tibiezas (Jó 42.2 BKJ) – “Sei que podes realizar tudo quanto
desejares; absolutamente nenhuma das tuas ideias e vontades serão frustradas!”.
“Aquietai-vos...” – marchar pelo deserto é
ocupar-se da vida.
Recife, 19 de
Dezembro de 2015
Pastor
Válter Sales
Texto dedicado ao meu genro,
Ito. Natal de 2015.
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